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ascido
em 1930 numa família de origem camponesa, Pierre Bourdieu ensinou
em Moulins, em Argel, em 1958, quando crescia o movimento pela independência
da Argélia, e em Lille, no Norte da França. Em 1964 o sociólogo havia
chamado atenção ao publicar, com Jean-Claude Passeron, o livro Les
héritiers - Les étudiants et la culture (Os herdeiros - Os
estudantes e a cultura), no qual, antes dos protestos de maio
de 68, já fazia uma ácida crítica ao sistema universitário francês.
Os dois desenvolveram na época o conceito de ''capital cultural'',
segundo o qual a expressão simbólica teria um ''valor de troca'',
semelhante ao do dinheiro e da propriedade.
Com suas intervenções marcadas pelo bom humor, a figura de Bourdieu
tornou-se familiar a um público mais amplo, para além dos limites
da universidade. Em 1980, ele deu seu apoio à ''anticandidatura''
do humorista Coluche à presidência da França.
Idealista - Depois de começar a ter publicados nos jornais
artigos e entrevistas, Bourdieu passou a ser ouvido também pelas emissoras
de TV, na qual os espectadores se habituaram a ouvir suas posições.
Os temas poderiam ir da relação entre os sexos - ele é autor de A
dominação masculina, publicado pela Editora Bertrand - até os
males do neoliberalismo.
Num de seus mais de 40 livros, Sobre a televisão (Editora Jorge
Zahar), o sociólogo pinçou este veículo como o exemplo mais gritante
da ''lógica comercial'' que domina toda a mídia. Para José Bonifácio
de Oliveira Sobrinho, o Boni, atual consultor da TV Globo, o livro
de Bourdieu revela ''um acadêmico brilhante, mas bastante distante
da realidade. Na prática, o que ele dizia não tinha aplicação''. Segundo
Boni, Bourdieu achava que a TV tinha que ir além de entretenimento:
''Ele tinha horror à produção - incluindo edição, maquiagem, gráficos
- e ao mercado. Para ele, era preciso eliminar isto para conseguir
o maior grau de pureza do veículo. Só que não dá para bancar esta
TV. Por isso, não o considero um crítico, mas sim um idealista, já
que ele não oferecia um caminho viável. Mesmo assim, foi um acadêmico
importante. Para quem sabe ler o que ele estava querendo dizer, é
uma grande contribuição.''
Entre 1964 e 1980, Bourdieu assumiu a direção da École des Hautes
Études en Sciences Sociales, em Paris. À frente da instituição, ele
e sua obra nortearam a formação de gerações de intelectuais franceses
e de outros países, inclusive do Brasil.
Intelectuais públicos - Carlos Benedeto Martins, professor
do departamento de Sociologia da Universidade de Brasília, depois
de assistir, em 1982, à aula inaugural de Bourdieu no Collège de France,
participou também de vários seminários fechados com o sociólogo: ''Ele
não falava mais do que dez minutos. Ouvia muito, escutava o que os
alunos tinham a dizer de seus próprios trabalhos, fazia algumas observações
e se retirava. Mas era muito claro, muito inteligente. No começo deste
ano, estive em Paris e estava sendo exibido em um pequeno cinema o
documentário sobre ele, La sociologie est un sport de combat
(A sociologia é um esporte de combate) e estava lotado. E não
de intelectuais, mas de jovens estudantes. E eles se divertiam, riam
com o filme.''
Na opinião de Michel Misse, sociólogo, professor do Instituto de Filosofia
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ''até os anos 70,
entre os acadêmicos franceses havia a tradição dos intelectuais públicos,
que, além da carreira universitária, tinham também forte presença
na sociedade. Mas essa tradição se desfez. Os últimos grandes intelectuais
públicos foram Sartre e Merleau-Ponty. Hoje, voltaram a existir uns
poucos e Bourdieu foi quem resgatou isso''.
O sociólogo exerceu influência marcante no pensamento universitário
brasileiro, afirma Luís Werneck Vianna, professor do Instituto Universitário
de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj): ''É o autor estrangeiro mais
citado na bibliografia brasileira. Um orientando meu, Manuel Palácios
da Cunha e Mello, em sua tese Quem explica o Brasil, mostra
essa presença. É o pensador mais influente nas Ciências Sociais daqui.''
O
amigo brasileiro do mestre
(i.e. Daniel Lins)
Jornal
do Brasil, Rio, 25/JAN/2002.
O
artigo é praticamente inédito - só foi publicado numa pequena revista
acadêmica francesa - e vai constar do derradeiro legado de Pierre
Bourdieu. Na terça-feira passada, o professor Daniel Lins, da Universidade
Federal do Ceará, recebeu uma carta do mestre tratando dos detalhes
da edição do texto Dois imperialismos do universal, escrito
há cinco anos, no qual o sociólogo antecipa com impressionante precisão
as conseqüências da hegemonia norte-americana. O trabalho fará parte
da coletânea Repensar a América, que será em breve lançada
pela editora Papirus.
Na carta o francês contou ao amigo, pela primeira vez, sobre a doença
que o consumia. ''Estou profundamente doente e minha situação é grave'',
disse, justificando a demora em escrever sobre a publicação do artigo.
Lins, de 52 anos, e Bourdieu se conheceram em Paris, há 15 anos, e
o cearense logo entrou para a órbita dos acadêmicos que gravitavam
em torno do fascinante professor. Quando voltou ao Brasil, há nove
anos, manteve estreito contato com Bourdieu, que passou a colaborar
com os livros organizados por ele.
Em 1999, foi um dos autores presentes em Cultura e subjetividade: saberes
nômades e, no ano 2000, em A dominação masculina revisitada.
No ano passado, sempre pela Papirus, Lins publicou uma longa entrevista
com Bourdieu, O poder simbólico econômico. Para este novo livro,
Bourdieu sugeriu a reedição do texto que havia passado em brancas
nuvens. Em sua análise, o sociólogo francês aponta que, num trágico
fait-divers, a América se impôs como verdade única - tendo
como símbolo o homem branco, alto e ocidental. ''Ele deu à Sociologia,
que antes fazia apenas constatar, o pensamento típico da Filosofia'',
define Lins. Que, porém, guarda uma lembrança mais singela do professor:
o dia em que, num café em Paris, Bourdieu dissertava sobre a complexidade
social enquanto, fazendo as vezes de garçom, servia croissants
ao discípulo.
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