Embora tenha firmado sua reputação nos meios acadêmicos entre os
anos 60 e 80, foi só na última década que Bourdieu tornou-se conhecido
de um público mais amplo, ao assumir o papel de ideólogo do movimento
antiglobalização. A imagem do militante acabou se fundindo ou se
sobrepondo à figura do professor e pesquisador. Ao comentar essa
dicotomia - para ele falsa -, Bourdieu escreveu num de seus últimos
livros, Contra-fogos 2 (Editora Jorge Zahar): ''Pela lógica
do meu trabalho, fui levado a ultrapassar os limites em que me tinha
fixado em nome de uma idéia de objetividade, que passei a ver como
uma forma de censura.''
A guinada de Bourdieu, marcada pelo lançamento em 1993 do livro
A miséria do mundo (Editora Vozes), aproximou o intelectual
dos movimentos sociais e lhe trouxe a amizade de personagens como
José Bové, o agricultor francês que ficou famoso ao depredar uma
loja de McDonalds em seu país. ''Para ele, a própria vida já representava
um engajamento'', disse Bové, diante da notícia da morte do amigo.
Crítica - Para alguns colegas do mundo universitário, no
entanto, a militância de Bourdieu teria roubado parte do rigor acadêmico
de sua obra. Ao comentar a morte do sociólogo para o jornal Le
Monde, Luc Boltanski, diretor da École des Hautes Études en
Sciences Sociales, preferiu distinguir entre ''uma obra importante
e discutível, no bom sentido do termo, e a propaganda dos últimos
anos, promovida por um grupo de seguidores dogmáticos''. Segundo
Boltanski, ''como ocorreu com o lacanismo, ele tinha à sua volta,
uma espécie de pequeno grupo de seguidores autoproclamados. A parte
de sua obra que considero mais interessante é a que se refere à
Antropologia. O mais discutível é o endurecimento do seu sistema
a partir da metade dos anos 70, com uma forte tendência positivista.''
O francês Louis Pinto, discípulo de Bourdieu que publicou há dois
anos um livro sobre o sociólogo, Pierre Bourdieu e a teoria do
mundo social (Editora FGV), explica que a originalidade de sua
obra trouxe ''uma nova maneira de ver o mundo social'' pela qual
ganham maior relevância ''as estruturas simbólicas''. Mas, se numa
primeira fase Bourdieu priorizava, entre estas estruturas, a educação,
a cultura, a literatura e a arte, nos últimos anos procurou dissecar
a mídia, a política e a economia.
Para o filósofo francês Jacques Derrida, o mundo perdeu ''uma grande
e original figura'', cuja maior contribuição foi ter tentado criar
''uma sociologia da Sociologia''.
Um
intelectual para um outro mundo possível.
EMIR
SADER, Jornal do Brasil, Rio, 25/JAN/2002.
Emir
Sader é cientista político.
nquanto
Sartre vivia, as pesquisas sobre o principal intelectual francês
o tinham como hors concours, de tal forma sua obra e seu
estilo de intervenção intelectual davam a pauta do
tipo de atuação que um pensador engajado com o seu
tempo deveria ter. Assim que ele morreu, a primeira escolha recaiu
sobre Lévi-Strauss, uma espécie de anti-Sartre, nem
tanto por haverem polemizado entre si, mas pelo estilo de trabalho
acadêmico de Lévi-Strauss, que dizia ter assinado um
único manifesto - ''de apoio à luta das nações
indígenas brasileiras'' -, ainda assim porque diretamente
relacionado a seu objeto de estudo e pelo vínculo estreito
que ele havia estabelecido com o Brasil.
Iniciava-se assim um longo período regressivo, de predominância
do conservadorismo na vida intelectual francesa. Do ''assalto ao
céu'' das barricadas de 68, apoiadas por Sartre, passou-se
ao minimalismo político de Foucault, expressão de
posição defensiva, cética, ancorada numa visão
pessimista do mundo, que renunciava aos grandes projetos históricos,
com a desconfiança de que estes desembocariam fatalmente
no totalitarismo. Passou-se de uma certa hegemonia do pensamento
marxista ''com sua dicotomia capitalismo/socialismo'' à hegemonia
liberal, com a centralidade da polarização democracia/totalitarismo,
em que o capitalismo se apagava em favor da democracia liberal e
o socialismo era condenado pela ''ditadura do proletariado'' teoricamente
e pela natureza do regime soviético, em termos concretos.
Solidariedade - Esse clima se manteve na França até
os anos 90, quando o pensamento crítico voltou a ocupar um
lugar de destaque. A obra de Pierre Bourdieu tinha conseguido
um acúmulo de capacidade analítica e crítica
desde seus escritos ainda dos anos 60, com Jean-Claude Passeron,
que deram partida para as suas grandes teorias da noção
de ''campo'' e seus desdobramentos. Porém, o lugar político
dessas elaborações era ínfimo, até que
as brechas da hegemonia do ''pensamento único'' começaram
a aparecer mais abertamente. Para isso Bourdieu teve um papel essencial,
que é preciso reconhecer com todo destaque, mais além
do poder analítico de suas obras teóricas.
Na greve do serviço público francês de 1995/1996,
que derrubou o governo de direita e possibilitou o retorno dos socialistas,
com Leonel Jospin, Bourdieu esteve à cabeça dos movimentos
de solidariedade com o setor público e com espírito
público, contra aqueles que, ''como Alain Touraine, por exemplo'',
representavam o espírito de privatização do
Estado, identificando a social-democracia com o neoliberalismo.
Aquela divisão marcou a intelectualidade francesa e representou
um novo ponto de partida para o engajamento político de parte
da sua intelectualidade, vinculada a novos movimentos políticos.
Contemporâneos são o editorial do Le Monde Diplomatique,
de Ignace Ramonet, uma convocação para romper com
o ''pensamento único'', assim como a fundação
de Attac e a própria coleção de livros de bolso
dirigida por Bourdieu, que alimentou os novos movimentos.
Visões americanas - Bourdieu passou a ocupar o lugar
de intelectual comprometido com a denúncia do farisaísmo
teórico do neoliberalismo, com todas as suas variantes, inclusive
a ''terceira via'', e com o apoio aos novos movimentos que questionam
a globalização liberal em nome de um outro mundo possível.
Na sua mais recente entrevista, Bourdieu se identifica plenamente
com os movimentos que explodiram à superfície em Seattle
e que desembocam no Fórum Social Mundial de Porto Alegre.
Sua obra, restrita até aqui ao mundo acadêmico, tem
sido recentemente divulgada de forma mais ampla, a partir do prestígio
conquistado por Bourdieu nos combates ideológicos franceses,
de que ele foi o protagonista mais importante. Um de seus textos
mais recentes denuncia o que ele chama de ''argúcias da razão
imperialista'', para designar as modalidades diretas e dissimuladas
de hegemonia americana no pensamento acadêmico e até
mesmo jornalístico ocidental. Também o Brasil é
objeto de sua preocupação, ao constatar como as visões
estritamente americanas sobre os temas raciais tendem a ser induzidas
por uma parte do pensamento universitário brasileiro, em
detrimento das análises concretas, do seu caráter
necessariamente histórico.
''O que pensar, efetivamente, desses pesquisadores americanos que
vão ao Brasil para incentivar os líderes do Movimento
Negro a adotar as táticas do movimento afro-americano de
defesa dos direitos civis e a denunciar a categoria de pardo (termo
intermediário entre branco e preto, que designa as pessoas
de aparência física mista), com o objetivo de mobilizar
todos os brasileiros de ascendência africana em base a uma
oposição dicotômica entre afro-brasileiros e
brancos, no exato momento em que, nos Estados Unidos, os indivíduos
de origem mista se mobilizam para obter do Estado americano (começando
pelo Setor do Censo) o reconhecimento oficial dos americanos mestiços
e deixe de classificá-los forçosamente sob a etiqueta
única de negro?'' Esse é o estilo agudo e polêmico
de Bourdieu, que, como nenhum outro intelectual francês contemporâneo,
soube associar teoria e política, reflexão conceitual
e intervenção concreta, crítica e ação.
Sua obra e seu estilo, retomando aquele deixado por Sartre - tardiamente
reconhecido, com justiça, como ''o intelectual do século''
-, apontam para os novos movimentos políticos e para uma
nova geração do pensamento crítico também
entre nós.