|
o decorrer de uma década, o pensamento francês e, por
extensão a cultura ocidental, perde quatro de seus emblemáticos
nomes: Félix Guattari, Guy Debord, Gilles Deleuze e, agora,
o franco-argelino Pierre Bourdieu.
O
intelectual interventor
De um modo ou de outro, os demais citados viveram basicamente para
as obras vigorosas que escreveram. Essas permanecem iluminando e provocando
o pensamento de quem a elas deseje recorrer, situação
na qual também se inclui Bourdieu. Todavia, a ele algo de especial
se foi somando ao longo da vida: o papel do intelectual interventor.
Nesse sentido (e não em outros), Bourdieu se mostrou legítimo
herdeiro do exemplo deixado por Sartre.
Outro traço peculiar fazia pulsar a presença interventora
em Bourdieu. Nascido, como Albert Camus, na Argélia, o teórico
jamais apagou em si as marcas de um ser ramificado nas vicissitudes
do Terceiro Mundo. Como tal, conheceu os efeitos ambíguos da
colonização. Seguramente, dessa origem filiada aos traumas
de um cenário de pobreza e de opressão, tenha emanado
seu intransferível compromisso com o discurso e a ação
combativos, aspecto que, nas duas últimas décadas, Bourdieu
ainda mais intensificara, deixando-o quase como voz solitária
da resistência, na contramão da avalanche imposta pela
Nova Ordem Mundial, ora na construção de seus textos,
ora na ocupação dos espaços públicos possíveis,
tanto na condição de entrevistado quanto na firmeza
de seus discursos como membro do Parlamento europeu. Enfim, Bourdieu
sempre esteve associado ao perfil da inteligência incômoda,
intervindo nos limites alcançáveis por uma voz
inquieta e insubmissa, a exemplo do que, no continente americano,
Noam Chomsky é outra referência.
O
intelectual da obra-mosaico
Em sua trajetória marcada, acima de tudo, pela ética
retilínea, o autor de As regras da arte soube, como
poucos, ao longo de seus 40 livros, construir um pensamento sinuoso,
multifacetado, graças à versatilidade dos temas, razão
pela qual seu nome não é confinável ao rótulo,
por vezes estreito, de sociólogo. Na verdade, Pierre Bourdieu
está consagrado e consignado na linhagem dos pensadores.
Abordagens incisivas sobre política, arte, economia, relações
conflitivas entre cultura e mercado, e, mais recentemente, a ferocidade
crítica contra a quase hegemônica cumplicidade a envolver
aparelhos midiáticos e corporações do capital
tornam o conjunto da obra um mosaico reflexivo acerca dos descaminhos
e impasses da tensa hipermodernidade. Seu discurso é isento
de evasivas. Vai direto à ferida. Seu estilo de escrita não
embala o leitor. Impulsiona-o à reatividade. Não seduz
pelo efeito de uma frase. Trata-se de um pensamento movido pela secura
da razão, na justa medida do que pretende atingir e problematizar.
É isto que o torna incômodo e interventor. Seleciono,
a título de ilustração, uma frase de Bourdieu,
colhida numa recente entrevista publicada no caderno Prosa e verso
(O Globo, 12/1/02): "Berlusconi é um fascistóide,
e a verdade é que o neoliberalismo só pretende conservar
do Estado o exército, a polícia e as prisões",
ou seja, corte a frio, sem direito a anestésico.
Em síntese, o ideário que norteia o autor de O poder
simbólico prima por não fazer concessões
nem agrados, menos ainda investiu em formulações exóticas
com as quais pudesse faturar notoriedade no marketing cultural. Seus
alvos sempre foram claros, como inequívocas foram as posições,
o que o deixou, por muito tempo, à sombra dos holofotes.
O
intelectual e a mídia
A luz midiática – por si tímida ao focar a figura do
intelectual – sempre foi mais generosa com outros intelectuais contemporâneos
do autor de Sobre a televisão, a exemplo de Umberto
Eco, Jean Baudrillard, Alain Touraine, Paul Virilio, Michel Maffesoli
(citemos apenas europeus). Sobre esses, sem demérito para as
respectivas obras, paira uma atmosfera mais midiaticamente digerível.
Sobre Bourdieu, dado o tom de seus enfoques, o tratamento midiático
sempre realçou o confronto, sem esconder, entretanto, o desconforto,
produto da própria exposição.
A diferença de tratamento e a quantidade de solicitações
por parte da mídia oficial servem de indicativos do quanto
o intelectual pode (ou não) ser assimilável e tolerado.
No Brasil, principalmente, tal fato (o ostracismo do intelectual interventor)
é quase infalível. Aliás, a mídia oficial
tupiniquim tende a fixar dupla exigência ao intelectual: um
discurso rentável e um figurino (ou modelito) esteticamente
interessante. Na falta de um dos "ingredientes", é hábito
privilegiar-se o segundo, ou seja, não se podendo reunir os
dois requisitos, opta-se pelo falso intelectual. O charme se encarrega
de sustentar a fragilidade reflexiva. A propósito, tal padrão
é também extensivo à escrita, seja jornalística,
seja acadêmica.
Enfim, a morte de Bourdieu impõe-lhe um silêncio irreversível.
Fica, porém, a voz germinadora e disseminadora de ecos. Estes
hão de dar continuidade, na esperança de que se multipliquem
na qualidade e na quantidade necessárias ao embate inadiável,
tão próximo quanto visível. A vida de Bourdieu
deixou claro: de nada vale acusar o mal-estar, se unido não
estiver à produção ativa do incômodo, sob
pena de tudo transformar-se em mero registro de um lamento, de um
ressentimento, ou, pior ainda, de inercial saudade. Obrigado, Pierre
Bourdieu...
|
|