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ierre Bourdieu ocupa, com força e vigor, durante décadas,
a cena do campo intelectual francês. Ele faz parte de uma linhagem
de intelectuais preocupada na intervenção do debate
público, que no passado teve como personagens intelectuais
como Victor Hugo, Emile Zola, e mais recentemente, Jean-Paul Sartre
e Michel Foucault. Uma forte herança do meio intelectual francês,
marcada pela busca de s’attirer em várias frentes
de combate. Sartre foi visto criticamente por Bourdieu como uma espécie
de "intelectual total" e, no final dos anos 90, a respeitada revista
francesa Magazine Littéraire dedicou um de seus números
(o 369) a Bourdieu, intitulado "Pierre Bourdieu: intelectual
dominante?".
A
força simbólica de Bourdieu, primeiramente no meio acadêmico,
tem como base sua produção teórica. Originário
da Filosofia, estudante de Raymond Aron (ironicamente, uma espécie
de antítese de Sartre), Bourdieu inicia sua carreira como professor
na Argélia, antiga colônia francesa e, sob a influência
desta região do Magreb, surgem suas primeiras publicações.
Nos anos 60, torna-se professor da, então, Escola Prática
de Altos Estudos, hoje, Escola de Altos Estudos em Ciências
Sociais.
Uma
das contribuições mais destacadas de Bourdieu, no campo
das ciências sociais, é a importância dada às
estruturas simbólicas na leitura do mundo social, e a abrangência
em usar sua teoria nos mais variados fronts: educação,
cultura, arte, literatura, entre outros. O campo de produção
simbólico suscita a relação de força entre
os agentes, que por sua vez, leva à relação de
sentido. Nesta perspectiva a violência simbólica é
um tema central nos diversos estudos de Pierre Bourdieu.
Tal
violência não é fruto da instrumentalização
pura e simples de uma classe sobre a outra, mas ela é exercida
através dos jogos engendrados pelos atores sociais. Aqui vemos
uma originalidade em Bourdieu em relação a certas abordagens
dualistas, que desassociavam as estruturas das ações
dos indivíduos. Sua abordagem denominada por ele mesmo de "construtivismo
estruturalista", explora uma outra vertente, que podemos associar
aos trabalhos de Peter Berger e Thomas Luckmann, que enfatizavam que
a sociedade é uma produção humana. A sociedade
é uma realidade objetiva. O homem é uma produção
social. Assim, Bourdieu analisa o mundo social através de um
processo de causalidade circular que articula níveis diferentes
da realidade separados precedentemente pela micro e a macro sociologia.
Duas noções são bem exploradas nos seus trabalhos
na articulações das duas instâncias que sustentam
o mundo social: campos sociais e habitus. A relação
entre estas duas instâncias faz com que as estruturas se tornem
corpo, mas igualmente que o corpo se faz estrutura.
A
partir desta perspectiva e armado com outros conceitos, como legitimidade,
estratégia, classe social, interesse, capital simbólico,
Bourdieu avança em vários domínios da sociedade,
campos sociais, e faz seu combate sociológico. Entre os vários
campos sociais analisados podemos destacar dois, o campo de produção
intelectual (homo academicus) e o campo de produção
jornalístico.
Refutando
dogmas e mitos acerca daqueles que analisam a realidade, Bourdieu
investe no sujeito da ciência como parte do objeto da ciência,
afastando a ilusão de "intelectuais sem laços nem raízes",
uma forte ideologia arraigada no mundo intelectual. Sua análise
infiltra-se no interior da dinâmica acadêmica e busca
caracterizá-la pelos interesses específicos (postos
acadêmicos, contratos de edição, reconhecimentos
e gratidões), na maioria das vezes imperceptíveis aos
olhos daqueles que não fazem parte deste universo.
Bourdieu
ressalta num olhar amplo sobre este campo que "os intelectuais são,
enquanto detentores de capital cultural, uma fração
(dominada) da classe dominante, e muitas de suas tomadas de posição,
em matéria de política, por exemplo, devem à
ambigüidade de sua posição de dominados entre os
dominantes". Tal afirmação pode encontrar ricos estudos
de caso, seja no Brasil, na França, na Rússia como na
China. Esta ambígua relação de poder faz com
que muitos intelectuais se apropriem da competência que extrapola
seus limites de competência, fazendo apelo aos títulos
escolares, num resgate similar aos títulos de nobreza de outrora,
ou melhor, eles se tornam os títulos da nobreza de hoje, transformando-os,
com freqüência, em passaporte para se tornarem a "Nobreza
do Estado" contemporâneo. Esta apropriação é
acompanhada por um outro tipo de usurpação, o que o
torna uma autoridade acerca de temas que extrapolam a competência
técnica de certos intelectuais. "Essa usurpação
está no próprio da ambição do intelectual
à moda antiga, presente em todas as frentes do pensamento,
detentor de todas as respostas."
Nestes
meandros, Bourdieu vai tecendo o jogo realizado pelo homo academicus
e evidenciando o vai-e-vem de estrutura-corpo, possuído-possuidor,
história-presente, relação de força-relação
de sentido. Sua crítica se torna ainda mais tenaz quando ele
visualiza certos intelectuais seduzidos, em suas produções
supostamente científicas, por temas da moda: "Os que dão
a impressão de dominar sua época são muitas vezes
dominados por ela, terrivelmente datados, desaparecem com ela... Há
alguma coisa mais patética na docilidade com que ‘intelectuais
livres’ se apressam em adaptar suas dissertações aos
temas obrigatórios do momento, como são hoje o desejo,
o corpo ou a sedução? E nada é mais fúnebre
que a leitura, vinte anos depois, desses exercícios impostos
de concurso, que são reunidos, em um conjunto perfeito, nos
números especiais das grandes revistas ‘intelectuais’."
No
jornalismo
Um
outro campo social trabalhado por Bourdieu nos últimos anos
foi o campo de produção jornalístico. A preocupação
com este campo toma visibilidade pública na sua démarche
a partir da publicação da revista que ele dirigiu por
vários anos – Actes de la recherche em Sciences Sociales
– de 1994, número 101/102, intitulada "A influência do
jornalismo". Mais tarde ele apresenta duas emissões televisivas
em forma de aulas magistrais, que vão dar origem à publicação
do livro "Sobre a televisão". Neste mesmo tempo, o grupo de
pesquisadores que gravita em torno dele aplica conceitos de sua sociologia
para pensar uma sociologia das práticas jornalísticas
(Alain Accardo), a relação entre meios de comunicação,
política e opinião pública (Patrick Champagne),
ou mesmo a formação de centros e escolas de Jornalismo,
como a ESJ – Escola Superior de Jornalismo de Lille.
No
campo de produção jornalístico, a contribuição
maior de Bourdieu será a importância adquirida no espaço
público da discussão acerca dos meios de comunicação
em geral, da televisão e da produção jornalística
em particular. Ele faz uma ressalva na introdução do
livro "Sobre a televisão": que a abordagem ali realizada é
marcada por "simplificações e aproximações".
Apesar da carência de produzir novos conceitos neste campo específico,
(pois ele articula sua teoria dos campos sociais com abordagens sociológicas
que têm história no estudo do jornalismo, como newsmaking,
ou então certos postulados já levantados por abordagens
sobre os meios de comunicação pelo viés da crítica
à sociedade de massa), Bourdieu soube aproveitar seu espaço
acadêmico e mediático para lançar a discussão
em torno da produção jornalística, demonstrando
como um instrumento de democracia se converte num instrumento de opressão
simbólica.
O
alerta acerca do papel dos meios de comunicação em geral
e da atividade jornalística em particular visa o bom funcionamento
das esferas culturais, da democracia e da política. Numa de
suas intervenções dirigidas aos responsáveis
dos grandes grupos mediáticos, intitulada "Questões
aos verdadeiros senhores do mundo", ele afirma: "Este poder simbólico
que, nas mais diferentes sociedades era distinto do poder político
ou econômico, está hoje reunido nas mãos das mesmas
pessoas, que detêm o controle dos grandes grupos de comunicação,
isto é, do conjunto dos instrumentos de produção
e difusão dos bens culturais".
No
tocante à produção jornalística, Pierre
Bourdieu busca caracterizar as propriedades do campo jornalístico
(o furo, a uniformidade da oferta, o tempo de produção,
a relação entre os profissionais), os efeitos deste
campo, até chegar à questão da ética jornalística.
A indagação acerca da ética busca ultrapassar
os velhos preceitos estóicos (sobrecarregando pessoas de responsabilidades
desmedidas) para propor a construção de ambientes propícios
para a efetivação de ações consideradas
éticas. Tais situações devem levar as ações
virtuosas, como dizia Aristóteles, a uma prática de
aisance. Caracterizando a falta de autonomia como uma das principais
propriedades do campo de produção jornalístico
(fruto da interferência das fontes, dos anunciantes e da política),
Bourdieu propõe criar um curto-circuito através da "lei
do meio", a crítica mútua que se pratica nos vários
campos de produção cultural e sobre a qual repousam
os diferentes progressos da ciência, da literatura, da arte.
Com
uma espécie de sistema de críticas cruzadas, Bourdieu
almeja nas suas análises que o coletivo dos jornalistas construa
instâncias eficazes de julgamento crítico capazes de
se opor às imposições das pesquisas de audiência,
criando assim sua legitimidade específica. "Os jornais não
publicam a quinta parte das informações que eles têm
de seus concorrentes, e é muito raro que no meio jornalístico
se engendrem polêmicas que, ao meu ver, fariam progredir a autonomia,
e pelas quais se inventaria e se exercitaria uma verdadeira deontologia
prática (e não teórica e programática)."
Eis aqui um terreno que muito pode ser trabalhado!
Como
salta aos olhos, Pierre Bourdieu sabia fustigar e provocar os diversos
agentes dos campos sociais em questão. Esta sua atitude me
faz retornar ao ponto de partida deste pequeno artigo, relacionando
Bourdieu a uma certa linhagem intelectual francesa. Terminarei me
apropriando de suas próprias palavras, quando ele prestou homenagens
póstumas a Michel Foucault; agora, tais palavras servem para
ilustrar e coroar seu percurso: "Ele sabia melhor do que ninguém
que os jogos de verdade são jogos de poder, e que o poder e
o privilégio, juntos, fazem parte de um mesmo esforço
para descobrir a verdade dos poderes e dos privilégios...".
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