|
s diários mais do que os semanários – e isso é
sintomático – souberam resenhar a vida e a obra do sociólogo
francês falecido na quarta-feira (24/1/02). Para a nossa TV,
por enquanto, ele não viveu nem morreu, porque para a nossa
TV Bourdieu não existe nem importa.
Das
20 obras que escreveu, a mais intensamente divulgada e debatida foi
um livrinho com apenas 95 páginas em formato pequeno, "Sur
la Télévision". A edição original (Liber,
dezembro de 1996) foi imediatamente acompanhada por uma edição
brasileira (Jorge Zahar Editor, agosto de 1997), numa agilidade editorial
inédita, considerando a especificidade do assunto (143 páginas
em formato de bolso).
Extraordinário
best-seller (o exemplar aqui examinado é da 10ª edição,
impresso em maio de 1997, seis meses depois de lançado). Pivô
de um dos mais importantes debates travados na mídia francesa
porque tratava da mídia. E a tratava com todo o rigor. Mas,
como a mídia francesa não esconde a cabeça na
areia, o debate foi intenso e prolongado.
Obituários
e homenagens aqui publicados enfatizam a ousadia, o brilho intelectual,
o inconformismo e a capacidade de Bourdieu de dirigir seu olhar aos
mais diferentes campos da vida social. Raros foram os que se detiveram
naquele que é o campo essencial da fenomenologia social contemporânea
– o campo jornalístico. E, como os autores são, em geral,
oriundos do campo acadêmico, não devem ter gostado do
que disse o mestre a seu respeito:
"A
influência do campo jornalístico sobre os campos de produção
cultural (sobretudo em matéria de filosofia e ciências
sociais) se exerce principalmente através da intervenção
de produtores culturais situados num lugar incerto entre o campo jornalístico
e os campos especializados (literário ou filosófico
etc.). Esses "intelectuais-jornalistas", que se servem de seu duplo
vínculo para se esquivar das exigências específicas
dos dois universos e para introduzir em cada um deles poderes mais
ou menos bem adquiridos no outro, estão em condições
de exercer dois efeitos principais: de um lado, adotar novas formas
de produção cultural, situadas num meio termo mal definido
entre esoterismo universitário e o exoterismo (*) jornalístico;
de outro, impor, em especial através de seus ensinamentos críticos,
princípios de avaliação das produções
culturais (...). (Sobre a Televisão, pág. 111)
[(*)
Exoterismo: ensinamento que, na Antiguidade grega, era transmitido
ao público, sem restrições, dado o amplo interesse
que suscitava e a forma acessível em que podia ser exposto.
(A.D.)]
Numa
excelente entrevista ao Jornal do Brasil (caderno Idéias,
11/9/00), Bourdieu explicou o conformismo dos jornalistas no tocante
à própria atividade:
"O
jornalismo – que se pensa como um ‘quarto poder’, mas crítico
– é sem dúvida um poder que, diante das pressões
de todas as ordens que pesam sobre a atividade jornalística
(sobre os jornalistas, portanto), já não tem muita coisa
de crítico e contribui muito para reforçar as forças
mais conservadoras da economia e da política
Mas
o que interessa é a sua intervenção – como ela
a chama – na TV, foco e título do seu panfleto:
(...)
Penso que a televisão, através de diferentes mecanismos
(...) expõe a um grande perigo as diferentes esferas da produção
cultural, arte, literatura, ciência, filosofia, direito; creio
mesmo que, ao contrário do que pensam e dizem com toda a boa-fé
os jornalistas mais conscientes de suas responsabilidades, [a TV]
expõe a vida política e a democracia a um perigo não
menor (...). (Idem, pág. 9)
Essa
integridade crítica, essa capacidade de enxergar o conjunto
de elementos que compõem o campo jornalístico, incorporando-o
ao bojo do processo sócio-cultural, distingue Bourdieu da maioria
dos pensadores e críticos contemporâneos.
Hoje,
no Brasil, temos críticos que só vêem as mazelas
da TV e, como escrevem em jornais ou revistas, fecham os olhos às
mazelas específicas destes media. Ou ainda, sendo oriundos
da academia, poupam-na de qualquer responsabilidade na difusão
do tal "esoterismo universitário".
Pierre
Bourdieu viu tudo, não pode ser esquecido.
|
|