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pesquisador e intelectual engajado contra o neoliberalismo morreu
na noite de quarta-feira no Hospital de Saint-Antoine, em Paris, em
conseqüência de um câncer.
Antigo professor do Collège de France, ao qual chegou em 1981,
tinha 71 anos. Diretor de Estudos da École des Hautes Études
en Sciences Sociales (EHESS), reuniu a sua volta uma escola sociológica
cuja vitrine era a revista Actes de la recherche en sciences sociales,
fundada em 1975. Para seus discípulos, sua teoria do mundo
social constitui uma "revolução simbólica".
As controvérsias suscitadas pelas intervenções
públicas de Pierre Bourdieu ao longo dos últimos anos
às vezes obscureceram a imagem do homem largamente reconhecido
como um dos grandes pensadores da sociedade contemporânea. Um
de seus discípulos, Louis Pinto, lembrou há dois anos,
no livro Pierre Bourdieu e a teoria do mundo social [Editora
FGV], como o trabalho do sociólogo representou "uma revolução
simbólica", análoga às que encontramos em outras
disciplinas, como a música, a pintura, a filosofia e a física.
O que Pierre Bourdieu trouxe à sociologia, explicou Louis Pinto,
foi antes de tudo uma "maneira nova de ver o mundo social", emprestando
"uma função maior às estruturas simbólicas".
A educação, a cultura, a literatura, a arte, seus primeiros
alvos de estudo, pertencem a este universo. Mas as mídias e
a política, que Pierre Bourdieu transformou, no fim de sua
vida, em seu principal campo de investigação, se aproximam
igualmente desta visão. O que caracterizou de "campos de produção
simbólica", segundo Louis Pinto, é o fato de que as
"relações de força entre os agentes" só
se apresentam na forma transfigurada e eufemizada de relações
de sentidos". Dito de outra forma, a "violência simbólica",
tema central dos trabalhos de Pierre Bourdieu, não se analisa
como puro e simples instrumento a serviço da classe dominante,
ela é exercida também no jogo dos atores sociais. É,
sem dúvida, esta vontade de superar as "falsas antinomias"
da tradição sociológica – entre interpretação
e explicação, entre estrutura e história, entre
liberdade e determinismo, entre indivíduo e sociedade, entre
subjetivismo e objetivismo – que dá originalidade à
sociologia de Pierre Bourdieu.
De Os herdeiros – Os estudantes e a cultura, um de seus primeiros
livros, publicado em 1964 com Jean-Claude Passeron, a Estruturas
sociais na economia, em 2000, passando por A distinção,
em 1979, e a obra coletiva A miséria do mundo [Editora
Vozes], em 1993, para citar apenas alguns dos cerca de 25 livros que
publicou, ele abriu um caminho de grande riqueza. Ao conceder a Bourdieu
sua medalha de ouro em 1993, o CNRS [Centro Nacional de Pesquisa Científica]
lhe rendeu justa homenagem. Pierre Bourdieu, considerou o CNRS, "restaurou
a sociologia francesa, associando o rigor experimental à teoria,
fundada sobre grande cultura em filosofia, antropologia e sociologia".
Mas Pierre Bourdieu não era apenas um pesquisador excepcional,
reconhecido por seus pares mundo afora; ele era também um intelectual
preocupado em interferir no debate público, segundo a tradição
francesa de Zola a Sartre. Ele lutou muito, nos anos 90, para dar
grande visibilidade ao movimento social e encarnar o que chamava de
"esquerda da esquerda", ou seja, uma esquerda que recusa os compromissos
consentidos, segundo ele, pelo Partido Socialista.
"Dez anos de poder socialista resultaram em seu fim", nos disse em
1992, "na demolição da crença no Estado e na
destruição do Estado-Previdência, efetivadas nos
anos 70 em nome do liberalismo". Diante do silêncio dos políticos,
ele apelou à mobilização dos intelectuais. "O
que defendo", explicou na mesma entrevista, "é a possibilidade
e a necessidade do intelectual crítico". E acrescentou: "Não
há democracia efetiva sem um verdadeiro contrapoder crítico.
O intelectual é um contrapoder, e de primeira grandeza."
Ao combate ao neoliberalismo sob todas as formas Pierre Bourdieu consagrou
suas últimas forças. Ele se esforçou mais e mais
para combinar a postura de sábio à de militante, colocando
seu conhecimento científico a serviço de seu engajamento
político.
"Fui instado pela lógica do meu trabalho", assinalou numa de
suas últimas obras, (Contrafogos 2 – Por um movimento
social europeu) [Editora Jorje Zahar], a ultrapassar os limites
que me impunha em nome de uma idéia de objetividade que me
parece uma forma de censura". Ele se dizia preocupado em "tirar os
sábios da cidade da sabedoria", a fim de oferecer sólidas
bases teóricas àqueles que tentam compreender e mudar
o mundo contemporâneo.
Esta luta pôs em xeque também as mídias, que Pierre
Bourdieu julgava submissas a uma lógica comercial gritante
e às quais reprovava por dar a palavra a "ensaístas
tagarelas e incompetentes". Numa de suas últimas intervenções,
em 1999, ele se dirigiu aos responsáveis pelos grandes grupos
de comunicação. Em "Perguntas aos verdadeiros senhores
do mundo", afirmou: "Este poder simbólico que, na maioria das
sociedades, era diferente do poder político ou econômico,
está hoje nas mãos das mesmas pessoas, que detêm
o controle dos grandes grupos de comunicação, quer dizer,
do conjunto dos instrumentos de produção e de difusão
de bens culturais."
Ele se levantou contra a globalização, recusando a escolha
entre a mundialização concebida como "submissão
às leis de comércio" e ao reinado do "comercial", que
é sempre "o contrário do que se entende mais ou menos
universalmente por cultura", e a defesa das culturas nacionais ou
"tal ou tal forma de nacionalismo ou localismo cultural". Distante
destes "soberanistas", ele ao contrário pregava, incansavelmente,
o universal.
Pronunciando-se pelo "movimento social europeu", como primeira etapa
de um internacionalismo bem compreendido, defendia este ideal fiel
a seu papel de intelectual crítico.
Defendia ao mesmo tempo sua concepção de sociologia
tal como expôs, em 1982, em aula inaugural no Collège
de France. "A sociologia não é um capítulo da
mecânica, dizia, os campos sociais são campos de forças
mas também campos de lutas para transformar ou conservar estes
campos de forças". E acrescentou: "A relação
prática ou pensada que os agentes mantêm com o jogo faz
parte do jogo, e pode estar no princípio de sua transformação".
Contra todos os que o acusavam de atribuir peso excessivo às
estruturas e de se apoiar num determinismo desmobilizador, ele proclamava
sua crença na liberdade do homem. Sua vida e sua obra estão
aí como testemunhas desta forte convicção.
Dados
biográficos
1930:
nascimento em Denguin (Pyrénées-Atlantiques) em 1º
de agosto, de pai funcionário. Estudou em Pau, depois em Paris
(Louis-le-Grand e Escola Normal Superior). Graduado em Filosofia.
1955:
estréia na carreira de professor, no liceu de Moulins, depois
em faculdades de Argel, Paris e Lille.
A
partir de 1964: diretor de Estudos da Escola Prática de Altos
Estudos.
A
partir de 1968: depois de pertencer à unidade de pesquisas
dirigida por Raymond Aron, cria o Centro de Sociologia da Educação
e da Cultura, laboratório associado ao CNRS, que dirigirá
até 1988.
A
partir de 1975: diretor da revista "Actes de la recherche en sciences
sociales".
A
partir de 1981: titular da cátedra de Sociologia do Collège
de France.
1993:
Medalha de ouro do CNRS.
1995:
apóia os grevistas de dezembro contra o "plano econômico
Juppé". A partir daí, assume posições
políticas com freqüência, em textos publicados notadamente
por sua editora, Líber/Raison d’Agir.
A
partir de 1996: preside, em 24 de novembro, em Paris, os "états
généraux du mouvement social" [debates em defesa da
união das forças críticas e progressistas européias].
Obras
principais
1958:
Sociologie de l'Algérie (Sociologia da Argélia)
1963:
Travail et travailleurs en Algérie (Trabalho e trabalhadores
na Argélia)
1964:
Le Déracinement et Les Héritiers (O desenraizamento
e Os herdeiros)
1966:
L'Amour de l'art (O amor à arte)
1968:
Le Métier de sociologue (O ofício de sociólogo)
1972:
Théorie de la pratique (Teoria da prática)
1979:
La Distinction (A Distinção – Crítica
Social do Julgamento)
1982
: Ce que parler veut dire (O que falar quer dizer)
1984:
Homo Academicus
1988:
L'Ontologie politique de Martin Heidegger (A ontologia política
de Martin Heidegger)
1989:
La Noblesse d'Etat (A nobreza do Estado)
1993:
La Misère du monde (A miséria do mundo)
1997:
Méditations pascaliennes (Meditações pascalianas)
1998:
Contre-feux (Raison d'agir éditions) e La Domination
masculine (Contrafogos [Jorge Zahar] e A dominação
masculina [Editora Bertrand]
2000:
Les Structures sociales de l'économie (As estruturas
sociais da economia)
Bourdieu,
razões e paixões.
Roger-Pol
Droit, Le Monde, 25/1/02 – tradução Marinilda
Carvalho, in Observatorio da Impresa (Br), 30/01/02 [Version
française]
É possível encontrar na obra imponente e abundante de
Pierre Bourdieu uma intenção única, constante,
obstinadamente perseguida? Ao primeiro olhar, o leitor se arrisca
a desistir. Pois o trabalho considerável deste sociólogo
de grande envergadura assumiu formalmente diferentes aparências.
Na vintena de volumes por ele publicados, encontramos tanto pesquisas
de campo como análises conceituais, tanto intervenções
curtas sobre questões pontuais como longas reflexões.
Para não simplificar, a diversidade de assuntos abordados é
extrema! De rituais de Cabila ao sistema escolar, das instituições
de pesquisa ao casamento, de gostos culturais à dominação
masculina, dos altos funcionários à língua, de
Heidegger à televisão, os objetos de investigação
são tão numerosos e parecem tão discordantes
que a saída preguiçosa seria fragmentar a obra, considerando
sempre uma faceta de cada vez. Obteríamos assim todo tipo de
perfil, dando a cada um uma coerência aceitável. Mas
sua reunião continuaria problemática.
Há entretanto uma unidade profunda em Pierre Bourdieu. Apesar
de sua evolução, apesar dos períodos e das etapas
que sugerem um estudo detalhado de seu percurso, sua reflexão
gira em torno de uma única interrogação primordial.
Ela vem de uma herança muito antiga, que Bourdieu renovou,
perturbou. Essa questão, velha como a filosofia, é a
identidade. Conhecer-se a si mesmo foi injunção já
imposta a Sócrates. Quem sou eu, quem somos nós, o que
sei? Bourdieu retoma essas perguntas, remanejadas numerosas vezes
ao longo dos tempos. Mas ele as trabalha e as transforma de uma forma
muito singular. Pois ele não se interroga, como o fizeram classicamente
os filósofos, sobre a natureza ou a condição
humanas. Para ele não se trata mais de saber em que consiste
a essência do homem em geral, mas de compreender como é
produzido tal sujeito em particular, como se engendram seus gostos,
sua visão de si mesmo, suas estratégias.
Mas para se conhecer assim é inútil contemplar-se a
si mesmo. É ao redor, ou atrás, ou debaixo que se deve
olhar. O exterior, o detalhe, ao mesmo tempo visível e escondido,
do funcionamento social. O conhecimento de si mesmo não é
o resultado de uma introspecção, mas de uma objetivação.
Você acredita ter uma natureza artística, fica maravilhado
com seu dom? Indique antes data e local de nascimento, a profissão
de seus pais e seu currículo escolar. Estes detalhes pouco
nobres permitirão sem dúvida apreender mais sobre seus
supostos talentos do que autoriza seu próprio sentimento.
O desvio que leva ao conhecimento de si mesmo tem pouco em comum com
a psicanálise. Não são os conflitos psíquicos
que permitem captar a formação do sujeito. Como em Freud,
o indivíduo segundo Bourdieu não está mais "no
centro dele mesmo", mas, desta vez, o que o produz, e até sua
intimidade, é a exterioridade social.
Eis por que o indivíduo não saberia ser transparente
para si mesmo. A menor de nossas tendências é resultado
de um jogo complexo de códigos e de distinções
que são tudo, menos naturais. A ambição do trabalho
sociológico, tal como Bourdieu concebeu e aperfeiçoou,
é de desvendar em detalhes o jogo às vezes microscópico
e sua reprodução implacável. Para explicar esse
mecanismo escondido, ele forjou novos conceitos: habitus, campo,
violência simbólica, por exemplo. Sua contribuição
aqui é de uma amplitude e de uma força tais que é
o caso de se perguntar, ainda, como Luc Ferry e Alain Renault, no
triste panfleto em que tentaram se livrar do "pensamento de 68", puderam
ver nesta obra sutil e forte apenas uma "variante diferente do marxismo
vulgar".
A questão de fundo, aqui, é evidentemente a da libertação
tornada possível pelo conhecimento. Esta não é,
em Bourdieu, uma questão retórica, geral e abstrata.
Concreta e detalhada, a sociologia pode se tornar "um instrumento
de auto-análise extremamente poderoso, que permite a cada um
entender melhor o que é, dando-lhe uma compreensão de
suas próprias condições sociais de produção
e da posição que ocupa no mundo social".
A possibilidade existe, mas sua realização nunca é
certa. Nada garante que iluminar os determinismos sociais seja suficiente
para quebrá-los. Pois os dominados, como Bourdieu mostrou muitas
vezes, interiorizam sua própria dominação, e
acabam assim por reconduzir a si mesmos à opressão.
A violência simbólica cumpre essencialmente esta função.
Aqui também, mas em outro sentido, a transparência se
revela impossível.
Parece então que só resta uma saída. Ela exige
esforços contínuos, uma ação caso a caso.
Trata-se de desfazer a ilusão de transparência onde quer
que ela subsista. Exemplo: os alunos de uma grande escola se dedicam
à reflexão, e acham isso natural e normal. Deve-se perguntar:
quais são as condições sociais e históricas
na existência do indivíduo cuja atividade se apresenta
unicamente como livre uso da razão humana? Por quais desvios
se chega a considerar natural, universalmente humano, autenticamente
espontâneo um sítio escolar muito artificial, minuciosamente
construído, cheio de bibliotecas, cercado de códigos,
saturado de regras e símbolos?
Recusando as abstrações desencarnadas, Bourdieu desconfiava
dos mecanismos reducionistas. Ele fez sua a fórmula de Pascal:
"Dois excessos: excluir a razão, só aceitar a razão."
Clausewitz sustentava que a guerra é a continuação
da política por outros meios. A sociologia segundo Bourdieu,
tanto em seus golpes de gênio como em seus limites, em mais
de um sentido seria a continuação da filosofia por outros
meios.
Mas, aqui também, a transparência parece impossível.
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